Sábado, 26 de Setembro
Se bem me lembro, foi a partir de Sábado que os dias passaram a ser constituídos apenas por 'parte da tarde'. Acordámos e saímos de casa em direcção ao Centro Pompidou. De todos os sítios de que já falei até agora, este foi dos poucos que ainda não tinha visitado por dentro noutras vindas a Paris e, embora a Carlota me tivesse alertado para o facto de que se tratava de arte moderna a valer, tinha alguma curiosidade em conhecer a exposição permanente.
Digamos que a Carlota tinha razão.
Ao longo do caminho até chegarmos ao quarto andar, a vista foi-se tornando cada vez melhor e abrangente.
Lá dentro, as coisas são um pouco diferentes. Eu quando olhava para um pedaço de cera a fazer ginástica acrobática com a ajuda de uma maquineta toda expedita, ou para o vídeo da mulher gorda a fazer ginástica nua, ou para o outro vídeo de uma mulher - também nua - a degolar uma galinha, ou para ainda outro vídeo em que dois amantes nus pareciam lutar um com o outro enquanto davam dentadas numa galinha depenada interposta entre eles, não sabia bem o que pensar. Isto para não falar dos quadros mais explícitos, que não mostro aqui. Mas a certa altura fiquei com a sensação de que se tratava apenas de fazer arte pela arte, não com uma intenção necessariamente criativa mas pelo mero impacto e pela sensação que provoca - neste caso, as mais das vezes inquietação ou desconforto.
Depois de sairmos do Pompidou fomos a pé até Notre Dame, onde assistimos à missa. Pelo caminho passámos por uma feira de rua tipo 'venda de garagem', onde os comerciantes eram famílias que montavam estaminé com as coisas de que já não precisavam, aproveitando assim para ganhar algum dinheiro. Ele era livros estranhos e velhos, sapatos usados, candeeiros, livros escolares, cromos, cartas do pokémon, patins em linha, roupa velha. Havia muita gente nas ruas.
Depois da missa fomos para casa e à noite houve festa aqui na maison porque o Daniel fez anos. Foi giro e deu para conhecer mais pessoas.
Domingo, 27
Disneyland! Fomos todos à pála porque a tia da Sté arranjou bilhetes gratuitos. Alguns eram tarifa de criança, mas conseguimos entrar à mesma porque não há grande fiscalização.
Eu nas diversões fico sempre assim: borrado de medo, agarrado a alguma coisa, sem dizer um pio e à espera que acabe. Esta foto foi tirada quando estávamos no Hollywood Tower Hotel, uma daquelas em que um elevador vai acima e abaixo a altas velocidades.
Gosto mesmo de coisas que andam à roda. Not.
Foi bom, deu para divertir um bocado e despedir das férias.
Segunda-Feira, 28
Tinha rendez-vous com o homem do banco, cheguei lá com dez minutos de atraso e a senhora do accueil disse que ia dar o recado ao gestor de conta, eu esperei e continuei a esperar. O senhor chegou mais de uma hora depois e ficou surpreendido por me ver, já que ninguém lhe tinha dito que eu lá estava. Marcámos novo rendez-vous para o dia seguinte e eu fui à minha vida: passeio pela Madeleine e casa.
Terça-Feira, 29
Fui outra vez ao banco e à faculdade, mas ficou essencialmente tudo na mesma. A conta por validar, o cartão de estudante por fazer.
À noite vieram cá a casa jantar os nossos amigos italianos, que conhecemos na faculdade. Boa oportunidade para falar francês e inglês e misturar as duas coisas enquanto falávamos mal da França e do facto de em duas semanas termos ido mais vezes ao banco do que numa vida inteira em Portugal. Désolé.
Quarta-Feira, 30
De manhã foi-se tratar do subsídio que o Governo Francês dá aos estudantes para ajuda com o alojamento, mas como a minha certidão de nascimento - sim, pediram-me mesmo uma certidão de nascimento, a par de muitos outros documentos - não estava em Francês, o processo ficou pendente e à espera de uma versão francesa. Não podia ser apenas em inglês, tem de ser mesmo com tradução para a língua deles. Fui ao consulado tentar obter uma tradução oficial da que tinha comigo, mas o senhor da TV Rural explicou-me que já não se fazem coisas dessas em Paris e que o registo civil em Portugal é obrigado a emitir versões internacionais quando se pede. Adieu e casa.
Quinta-Feira, 1 de Outubro
Primeiro dia do estágio de Medicina Interna! Acordei cedo, vesti-me e cheguei ao hospital às 7:45 porque pensava que era suposto começar tudo às 8h. Dei logo com o serviço, que estava às moscas porque só às 9:00 é que os médicos chegavam. Sentei-me lá numa cadeira e pus-me a ler coisas sobre exame objectivo e afins. Não queria mesmo fazer papel de otário perante os colegas franceses, embora mais tarde tivesse vindo a perceber que isso seria inevitável.
Às 9 horas em ponto começou a sessão com os 'externos' - é o que chamam aqui aos alunos de Medicina que são integrados nos serviços hospitalares, o que, a juntar à designação 'Erasmus' que nos é dada, nem agrava nada o clima de ostracismo... Hehe! A secretária chegou com a lista dos alunos todos - da qual, como é evidente, não constava o meu nome - e respectivos crachás. Quando se percebeu que eu não só não estava na lista como não tinha um crachá, houve logo alguém que tratou de me fazer um. O meu crachá tem escrito 'MELO Pédro ERASMUS'. Gosto mesmo do facto de os franceses acentuarem o meu nome. Até o meu cartão de estudante de faculdade tem o acento agudo no 'e'. Pelo menos não acentuam o 'o' com um circunflexo, mas algo me diz que ça arrive!
Os assistentes foram simpáticos, tendo explicado como se divia o serviço, as várias alas, a forma de funcionamento e o nosso papel enquanto externos. Tenho cinco dias úteis de férias durante este estágio, pelo que só poderei ir a casa no Natal e terei de voltar para Paris antes da passagem de ano. Désolé!
Depois do discurso inicial pelos vários médicos responsáveis por nós, ficámos os 14 externos sozinhos na sala a dividir-nos pelas várias alas (há hemato-imunoterapia, pneumologia, infecciologia...), começou a palhaçada. Eu como não percebo muito do que eles dizem - quando são os profs ainda vai, mas com os colegas as coisas tornam-se deveras complicadas - fico sempre um pouco expectante, mando um sorriso um bocado desconfortável e assisto ao desenrolar dos acontecimentos. Uma das externas - que parecia a nurse Jackie num verdadeiro bad hair day, o que por si só é um feito, já que o cabelo da nurse Jackie é virtualmente inexistente-
mal a porta da sala se fechou após os assistentes terem saído, sacou logo da lista e começou a dividir a escolha das alas de acordo com uma ordem que eu não estava a perceber bem qual era. Perguntei à colega do lado qual era e ela disse-me que tinha a ver com as notas dos exames que tinham feito, segundo as quais a ordem de escolha do estágio era definida. Eu assenti e, respondendo à pergunta que se formava na minha cabeça com um 'sim Pedro, vais ser o último', perguntei-lhe porque é que eles estavam tão preocupados se ficavam na hemato ou na pneumo ou na ala dos VIH (o prof fez questão de reforçar que são mesmo todos VIH). Ela explicou-me então que, como a maior parte deles é do 6º ano, já fez pneumo, e prefere ficar em hemato ou em infecto, e que os lugares da pneumo eram sempre os últimos a serem escolhidos. A minha situação era exactamente a contrária: já fiz Hemato e Infecto, e não faço questão de passar 3 meses a fazer biópsias medulares ou decorar esquemas terapêuticos de anti-retroviras, o que por si só seria como voltar a aprender Francês all over again. Pneumo, por outro lado, é uma das especialidades com que nunca tive contacto, e não me importo de ficar três meses a estudar pulmões. Talvez seja desta que aprendo a ler radiografias torácicas.
Quando cheguei a casa, horas mais tarde, e olhei para a fotocópia da lista que eles tinham seguido para fazer a escolha, apercebi-me de que afinal a ordem tinha sido a alfabética e não baseada em exames. Só aí constatei que se tivesse visto isso mais cedo não teria sido o último a escolher. Mas afinal de contas fiquei com o que queria.
Dividimos depois os Sábados em que cada um ia trabalhar (isto aqui já foi mais democrático), fomos visitar o serviço e instalámo-nos nas nossas enfermarias. A minha enfermaria tem 10 doentes divididos por mim e pelo Clément, que é o meu colega. Todos os dias tenho de ver como estão os meus 5, fazer o registo de ocorrências e discutir as situações clínicas com a interna do nosso serviço, a Karine, que, à boa maneira francesa, é uma simpatia. Hm.
Depois de não ter compreendido metade das coisas que me foram ditas (já foi pior, noutros tempos, chegou a ser uma razão de 80% miss / 20% hit), bateu uma hora da tarde e fomos embora.
Passei ainda pelo edifício da faculdade e tentei requisitar um livro de pneumo na biblioteca - que é espectacular -, mas não me deixaram porque me tinha esquecido de colar o selo 09/10 no meu cartão de estudante.
Sexta-Feira, 1 de Outubro
Hoje cheguei às 9 ao hospital e já lá estava a externa de farmácia - no fundo ela faz o que nós fazemos, vai sempre atrás de nós ver os doentes embora não lhes mexa, mas é como se fosse uma enciclopédia farmacológica ambulante, o que é genial - de bata vestida e a perguntar-me se me podia seguir quando eu fosse ver os meus doentes. Eu bem tentei explicar-lhe que provavelmente não iria valer a pena porque as minhas conversas com os doentes iriam ser muito semelhantes a sessões de linguagem gestual, mas ela não se demoveu. Até nomes comerciais ela sabe, o que me dá muito jeito porque hoje, por exemplo, quando perguntei ao Clément a que é que correspondia o nome comercial francês do medicamento que um senhor estava a tomar ele respondeu-me como se eu fosse um puto de seis anos: 'olha, isto é um antibiótico, já ouviste falar das cefalosporinas? Este é uma cefalosporina de terceira geração, o ceftriaxone'. Hmm.
O primeiro doente que me calhou foi um senhor que estava internado por descoberta fortuita de Embolia Pulmonar após ter dado entrada com um quadro de retenção urinária por prostatite aguda. Hoje estava previsto eu ver apenas esse e mais um senhor do Sri Lanka que só falava em inglês e portanto os franceses não o entendiam muito bem. Eu levei comigo as folhas próprias para os externos preencherem - no fundo é um modelo de história clínica mas que vai mais directo ao assunto - e comecei a preencher coisas como 'idade', etc. Quando chegou à naturalidade, o senhor disse-me qualquer coisa que não percebi. Eu já tinha constatado que o francês dele era um bocado arredondado nos 'r' e que provavelmente era imigrante, portanto quando me disse o sítio de onde vinha e eu não percebi mesmo depois de ter voltado a perguntar, deixei passar e pensei ver esse dado mais tarde no processo dele. Tinha percebido qualquer coisa como 'lingerie', o que não fazia sentido na minha cabeça, e perguntei à interna, que me disse que achava que o homem era da 'Italie'. Eu achava que o senhor não tinha ar de italiano e voltei lá a perguntar-lhe. Só ao terceiro 'lingerie' é que percebi que ele estava a dizer 'Argelie'. De resto as coisas decorreram dentro da normalidade, tentei fazer um exame objectivo minimamente decente e escrever num Francês correcto. Claro que demorei eras, porque entretanto tive de medir as pernas do homem para as meias elásticas e ir com ele fazer um RaioX, fora os pormenores que ia perguntando aos enfermeiros e à interna. Bateu a uma da tarde e quando expliquei ao Clément que só tinha conseguido ver um doente ele disse 'désolé, il faut partir à 13 heures'. E assim foi. Sem stress, vim embora, e o senhor do Sri Lanka é para ver na segunda-feira. Com muita tranquilidade.
Contas feitas, foi um dia bastante bom. Consegui desenrascar-me minimamente no serviço, as enfermeiras gostam de mim, fiz amigos entre os franceses - convidaram-me para ir almoçar com eles, mas como ainda não tenho cartão de funcionário fui comer recambiado para a cantina da faculdade - e o meu francês arranhado até recebeu alguns elogios.
Pas terrible.
repara na hora...quase 5 da manhã e isto no "rico" Hospital de São José está o verdadeiro "frissom" da calmaria, graças a Deus!O que vale é mesmo que me ri muito a ler esta descrição das tuas aventuras:) Um beijinho grande querido
ps: a vantagem de estar em Portugal e não a ver a torre Eiffel é que amanhã por aqui é feriado...ou hoje...como queiras! Não me ligues antes das 5 da tarde!!!!:)
MJ