Não quero viver em Paris quando for grande.
Passar um ano nesta cidade vale por tantas coisas - pelo Francês que agora falo com maior fluência, pela beleza abrasiva que transborda de tudo o que é edifício, pelas viagens de autocarro que adoro por me permitirem pôr a leitura de anos em dia, pelas pessoas todas que tenho conhecido e que se riem com os erros que dou ao falar, por me encontrar com um lado da medicina mais pragmático e imediato - e por vezes mecânico e desinteressante, livro de receitas high cost - do que aquele que conheço em Portugal.
Nos últimos cinco meses, aprendi muitas coisas sobre mim. Atirei-me de cabeça para o desconhecido, passei momentos de perfeita incompreensão da língua e das gentes, tive dores de alma e momentos em que não havia senão dúvida. Vivi medos em tantas situações diferentes e por motivos também eles diversos, tentei pegar neles e moldá-los, adaptar-me, esquivar-me a tiros certeiros e implacáveis que mais não eram do que fruto da minha ignorância.
Hoje continuo a saber pouco, é certo, mas gosto de pensar que estou um pouco mais proactivo. Ainda no início do estágio de Pediatria tinha medo de ficar com os putos mais pequeninos, porque achava sempre que iam começar a chorar ou que os pais iam olhar para mim desconfiados - afinal eu era o externo Erasmus que levava choques em tudo o que era metálico porque a estática se gerava em mim com os nervos e transmitia-se às maçanetas das portas dos quartos quando as abria, originando momentos de vergonha maciça quando, ao ir sair, levava o choque e dizia putain, porras para ti, personalidade de tipo A, que até no metal da solução hidroalcoólica para desinfectar as mãos eu levo choques.
Sim, ainda tenho medo e levo choques e mais choques, mas só depois de ter a altura e o perímetro craniano medidos, assim como um exame clínico o mais completo possível. Sou mais imediato nas respostas que dou, porque domino um pouco melhor o francês, e fiquei contente quando na segunda-feira, com a Karen, me redimi da visita cataclísmica de há duas semanas porque consegui responder melhor do que a Hélèna e o Mohamed às perguntas que ela nos fez sobre icterícia. Mas ainda tenho tanto, tanto para aprender.
Os meus colegas franceses trabalham absurdamente. Todos os dias vão de manhã ao estágio e passam as tardes a estudar para o exame do internato que fazem no final do sexto ano. A diferença é que o exame deles é feito de casos clínicos, com perguntas de resposta aberta, sobre tudo o que se possa imaginar - ele é pediatria, neuro, psiquiatria, pneumo, cardio, saúde pública, urologia, ORL, tudo. Nada a ver com o que estudamos para o nosso exame de escolha múltipla em Portugal, o que me faz pensar que talvez seja altura de exigirem um pouco mais de nós.
Ontem, depois de um jantar de raclette em casa da Marie - sim, a mesma Marie que me queria roubar a Anaëlle -, regressei a casa de bicicleta, com o vento gelado a bater-me na cara e a tentar andar mais depressa do que o eléctrico que seguia a meu lado, evidentemente sem sucesso. A meio do caminho encontrei o Mehdi, meu antigo colega no estágio de Medicina Interna, que às onze e meia da noite regressava a casa de uma aula de casos clínicos e começou a falar em Espanhol comigo, como sempre fazia durante o estágio, mal sabendo que agora nem falar portunhol eu sei, porque só me saem palavras em francês. Nesse momento, decidi que gostava um pouco mais de ser Erasmus por não ter que levar a vida dura de um estudante de medicina francês, mas pensei também que estas pessoas simpáticas que tenho a sorte de conhecer aqui em França e me acolhem tão bem, convidando-me para festas da faculdade, aniversários e jantares, vão continuar uma vida da qual eu não mais farei parte dentro de alguns meses.
E por algum motivo, naquele instante de temperatura negativa e sorriso nos lábios, não tive pena disso.
PER-FEI-TO!
Despertas-me uma certa...inveja. Daquelas invejas boas. De um dia querer voltar, numa maré diferente desta!
Vocês têm todos um ar muito parisiense! Adoro ver as vossas fotos! ;)
Beijinhos a todos