N.B. - eu não vou ser pediatra.
No dia 1 de Março, começou o último mês do estágio de Pediatria. É verdade, o tempo passa muito depressa por estas bandas e nunca vos contei muito do que se tem passado no quarto piso do Hôpital Antoine Béclère.
Já tinha falado da rotação do estágio - o mês de Janeiro passei-o com os miúdos mais velhos, a primeira metade de Fevereiro nas urgências, a segunda metade de Fevereiro na Neonatologia, e nos primeiros quinze dias de Março ando a ver as crianças com idade até aos 6 meses.
Pédiatrie A
Esta foi, sem dúvida, a fase mais exigente do estágio. Todos os dias tinha pelo menos três doentes para ver, com aulas teóricas pelo meio e doenças completamente novas. A terça-feira é o dia da visita com o chefe de serviço - monsieur Labrune -, o PH - monsieur Gadjos - e o chefe de clínica, Arnaud.
O Arnaud é dos tipos mais bizarros que já conheci desde que estou a trabalhar nos hospitais de Paris. Usa uns óculos de geek pretos que lhe dão um ar ainda mais freakish do que ele certamete já teria sem eles, anda sempre a coçar-se no pescoço, o que despoleta sempre pequenas reacções inflamatórias locais e rashes muito suspeitos, e faz-nos perguntas como se estivéssemos em pleno século décimo terceiro perante o tribunal do santo ofício com uma condenação à fogueira na calha. Fala muito baixo, mas como se estivesse a ralhar-nos, o que já fez o José e a Marie terem sonhos vívidos com ele. Quando alguém diz uma piada - sobretudo as enfermeiras, que o adoram -, ele ri-se, mas há qualquer coisa de fatídico na sua expressão facial e nos seus dentes.
O sorriso não lhe fica bem.
Comigo o Arnaud nunca se chateou e a repreensão máxima que alguma vez me dedicou foi quando eu não tinha completado bem as curvas de peso e altura de uma criança - coisa que eu detesto fazer e à qual me esquivo sempre que posso me passou ao lado por mero incidente.
Vá, dois momentos interessantes na Pediatria A?
Bom, o primeiro diria que foi sina, destino, fado. Em todos os estágios hei-de eu testemunhar o choro de algum interno, e embora goste de pensar que tudo tem a ver com os meus maravilhosos olhos castanhos, a verdade diverge.
Segunda-Feira de manhã, pequena visita ao serviço com o Arnaud. Menino Árabe de 9 anos, Ismail, febre e vómitos desde a véspera, exame clínico, Pedro o que é que achas, Ah e tal, isto pode ser uma gastro-enterite, mas visto que o miúdo tem rigidez na nuca talvez seja uma meningite, Bacteriana ou viral, Viral porque ele não tem alteração do estado de consciência (foi mais pergunta do que afirmação), Pois de facto faz sentido, vamos então fazer-lhe uma punção lombar, fá-la tu?
Oh se não faço.
Duas horas depois, 2 da tarde, o dia hoje está a ser comprido, nem tomei o pequeno-almoço. A Sarah, interna, diz-me que se quero fazer a punção lombar tenho de ficar até mais tarde porque o melhor mesmo seria fazê-la depois do almoço, uma vez que as enfermeiras a esta hora estão a fazer a transição de turno e não se podem disponibilizar para nos darem uma ajuda. O Arnaud diz que não, a hora é JÁ.
Eu e a Sarah começámos portanto a preparar o carrinho com tudo aquilo de que necessitávamos, até que uma das enfermeiras mais velhas se vira e começa aos gritos connosco: 'Mas então os médicos vão fazer uma punção lombar AGORA? E não esperam por uma enfermeira? Mas que grande falta de respeito, vão fazê-la sozinhos porque não há quem vos ajude'. Levanta-se uma das enfermeiras mais novas para nos dar uma ajuda, gesto que a primeira contrapõe com um 'Não, tu ficas mas é aí sentada, não é hora de se fazerem gestos médicos'. A minha vida a andar para trás, já a pensar a quem é que tinha de pedir desculpas.
Pedir desculpas aqui e dizer que lamento dá sempre resultado.
A Sarah sai da sala das enfermeiras, larga num choro, eu não sei bem o que fazer, não sei consolar gente caramba, muito menos internas, a Raphaëlle pelo menos tinha tido o discernimento de desaparecer, a Sarah fica no corredor a carpir tristezas que não são minhas mas pelas quais sim, mais tarde pedi desculpa.
Passou-se, os nervos da Sarah acalmaram-se, vamos então ao quarto do doente fazer a punção.
Pai, mãe, interna chorona, enfermeiras, o mundo.
Grande merda. E eu que não tomei o pequeno-almoço.
C'est pas grave, Pedro, através da janela vejo a torre que me dá um certo ânimo, mas o que é que eu estou a fazer em Paris parte I. O pai olha-me como se me quisesse bater, o miúdo ri-se porque tem uma máscara de protóxido de azoto, a interna manda a família sair, mas o pai continua a olhar-me pela janela da porta como se eu tivesse a foice nas mãos.
Suo em bica, procuro as cristas ilíacas, linha horizontal, coluna vertebral, L4/L5, não sei bem onde estou mas é melhor picar no disco abaixo, cá está, está a entrar, isto não custa nada, a agulha está no espaço e o líquido começa a sair, gota
a
gota.
Não é xantocrómico, nem purulento, nem verde caganita. É claro e cristalino e o menino continua a dizer piadas.
Completamente indolor, miúdo deitadinho finalmente, a família entra, a interna assegura que tudo correu bem, o pai olha-me com um sorriso e aperta-me a mão, 'merci docteur'.
Outro ponto alto foi durante a grande visita do PH numa terça-feira. Nesse dia, retirei mentalmente tudo o que de mal alguma vez tinha dito do Xavier, da Anne-Cécile e da Raphaëlle, porque percebi que me tinham ensinado alguma coisa na Pneumologia.
Adolescente, fumador, hemoptise. Suspeita de embolia pulmonar, pneumonia, tuberculose, neo?
Eu sabia as coisas tanto na teoria como na prática, e quando disse ao Gadjos que a primeira coisa que ele tinha de fazer perante uma suspeita de embolia pulmonar não era os d-dímeros mas sim o score clínico de Genève, ele perguntou 'c'est quoi, ça?'.
Haha. Hahaha.
A verdade é que quando ele me perguntou o que fazer perante a suspeita de EP eu só me lembrei do Xavier na salinha da medicina interna a brigar connosco porque os d-dímeros não serviam para nada se o score desse probabilidade forte, e depois tive um vislumbre mental da Raphaëlle a fazer google do score de Genève, e finalmente todos esses traumas se materializaram numa resposta meio-torta que não foi mais do que um ensinamento para todos os presentes.
No final, o PH disse-me 'Pédrô, j'aime bien ta façon de penser'.
E o Arnaud, que me vai dar a nota no fim do estágio, não estava lá para ver o show. Shit shit shit.
Urgences
As duas semanas que passei nas urgências pediátricas foram calmas. Aprendi um bocado com os internos e os chefes e passei a estar um pouco mais à vontade com as crianças. Claro que quando me aparecia uma dor no joelho ou um tornozelo partido não fazia ideia de como proceder - ortopedia, onde estás -, mas fiquei com uma boa ideia do tipo de patologias que aparecem nas urgências.
Neonatologia
Eu não vou ser pediatra, mas se algum dia vier a sê-lo, hei-de trabalhar na Neonatologia, com os bebés prematuros. Duas semanas depois de lá estar, apercebi-me de que me tinha afeiçoado à Gabriella, que tem uma leucomalácia associada a hemorragia intraventricular esquerda que não são certamente os responsáveis por o cocó dela cheirar muito muito mal, ao Alexis, prematuro simples, à Nayla, que ficou a olhar fixamente para mim, como se me dissesse eu sei quem tu és e o que acabaste de fazer, após lhe ter administrado uma vacina enquanto a mãe dela tinha ido à casa de banho, ao Kevin, que na sua incubadora tinha um ar adorável, e à Amina, que fazia questão de estar toda cagada sempre que eu a ia examinar.
Aprendi a mudar fraldas, a dar o biberão e a reconhecer quando os bebés têm fome. Descobri algumas doenças novas, como a doença das membranas hialinas, e tive ainda um momento muito mau numa das visitas com a Karen, chefe de clínica da Pediatria B.
Estávamos eu e o Mohamed - o meu colega argelino com quem tenho conversas sobre tudo - a começar a visita no nosso segundo dia, quando a Karen nos começa a pedir para lhe apresentarmos um paciente de cada vez. Nós lá o fizemos, meio trapalhões, porque afinal ainda não os conhecíamos bem. A certa altura, juntou-se a nós uma rapariga estudante de parteira que tinha pedido para assistir à visita.
A Karen começa a fazer-nos perguntas específicas, sobre a neonatologia, para as quais nem o Mohamed nem eu tínhamos resposta. Percebi logo que ela não estava a ficar muito satisfeita com a nossa ignorância, mas a verdade é que eram coisas de que nunca tinha ouvido falar e portanto era natural que não soubesse. Mas o pior foi mesmo quando a estudante de parteira começou a responder a tudo de seguida, como se não houvesse amanhã. Eu procurava um buraco para me enterrar, qualquer coisa, porque a Karen olhava para nós com um misto de pena, gozo e incredulidade.
Nesse momento, olhei pela janela, e lá estava outra vez a torre, a olhar para mim como que a dizer o dia está lindo, Pedro, até me consegues ver do hospital, mas o que é que estás a fazer em Paris parte II.
Felizmente, as coisas melhoraram nos dias seguintes.
Foi nessa parte do estágio que me tornei mais amigo do Mohamed. Descobri que ele só come carne degolada, porque o Profeta assim o disse, e que reza virado para Meca cinco vezes por dia, e que aos 26 anos é puro e intocado, e que gosta de fugir do estágio sem dizer até amanhã a ninguém.
Pédiatrie B
Comecei esta semana com os miúdos da Pediatria B, depois de vir de Portugal - em Madrid consegui afinal apanhar o avião para Lisboa, depois de ter feito um choradinho para a senhora do check-in me incluir, mesmo se o vôo já estava fechado. Na verdade é como se fosse uma extensão da neonatologia, uma vez que as crianças aqui também têm semanas de vida mas não são prematuras.
Hoje a Marie mandou-me facas, foi evidente.
Temos nove doentes a dividir por três externos. Ontem vi os meus três miúdos e fiquei com um caso muito interessante, de uma menina de 13 dias com um atraso de crescimento a quem foi detectada uma poliquistose renal que ainda não se sabe se é recessiva ou dominante. One for the books!
Mal se percebeu que a criança tinha esse problema, após termos analisado a ecografia, a Marie virou-se logo e disse 'ah, este seria um excelente caso para apresentar na sessão clínica que vamos ter no final do mês'. Eu não disse nada, fingi que estava a trabalhar num dos meus outros doentes, mas pensei cá para mim 'come again?'. Ao almoço, estava a falar com a outra externa que está connosco no lado B, e disse-lhe que seria bom apresentar aquela doente, que era minha, ao que ela me responde que a Marie já tinha dito que queria ficar com ela. Eu fiquei a pensar no assunto, mas finalmente decidi que era hora de step up e não deixar que gozassem com o meu trabalho. Mas que raio de direito pensa ela que tem sobre os meus doentes?
Not cool, bitch. Not cool.
Hoje, enquanto fazíamos as transmissões com a Karen, ela frizou que a Anaelle era uma excelente doente para ser apresentada por um externo, ao que eu respondi 'j'aimerais bien la prendre'. A Marie não falou comigo durante toda a manhã, mas afinal era a minha doente e eu tenho o direito de apresentar a história dela, né?
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