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Madame Qui.

O facto de só ter 10 doentes na minha enfermaria faz com que acabe por conhecer cada um deles relativamente bem - muito embora a minha chefe de clínica goste de pensar que não. A verdade é que nós os quatro - chefe de clínica, interna e os dois externos - damos o litro todos os dias e fica sempre muita coisa por fazer quando me venho embora. Na terça-feira fiquei no hospital até às seis da tarde para ajudar na drenagem de um pneumotórax espontâneo (jovem de 19 anos alto e esguio, o típico que se lê nos livros mas que eu nunca tinha visto ao vivo) e só aí é que percebi que o período da manhã em que lá estou todos os dias é apenas uma amostra do que se vive naquele serviço durante um dia inteiro. Chegar lá às 9 horas e ver que os dossiês têm todas as anotações da Karine do dia anterior nunca me tinha feito pensar que ela muitas vezes fica mesmo até muito tarde no serviço para ter aquilo tudo pronto. Ainda para mais, face à burocracia dos franceses, tudo tem o seu papelinho próprio que demora séculos a preencher e não basta enviá-lo por fax, é preciso telefonar uma e duas e três vezes até as coisas ficarem mesmo a modos de acontecerem. A modos de.

Mas voltando à frase inicial - que eu até nem divago nada -, na segunda-feira entrou no serviço uma senhora de 26 anos com trissomia 21 que tinha vindo ao hospital devido a um episódio de hemoptise por explicar. Chamava-se E. Qui. Ficou na cama 9, que não é uma das minhas, e por isso não liguei muito. Naquela manhã, contudo, o Clément não estava e eu era o único externo, pelo que durante a visita tive de ser eu a fazer as coisas por ele e fui com a chefe ver cada um dos doentes. Madame Qui não estava sozinha no quarto - tinha por companhia Madame Mercier, a senhora que uma semana antes me tinha dito que não queria que eu a examinasse porque estava muito fatigada e passava a vida a chatear-se com os exames que lhe pedíamos à tiróide porque dizia que não tinha problema nenhum na glândula e que o problema dela era a broncopneumonia - quando na verdade era uma embolia pulmonar bilateral considerável igual a outra que já tinha tido dois anos antes - e que tudo o resto tinha sido inventado por uma prima com quem não se dava bem e que o médico de família também estava metido no complô.

Madame Qui. Sim, vamos lá.

Madame Qui simpatizou logo comigo. Quando a chefe me apresentou como sendo o externo Erasmus de serviço ela perguntou de imediato 'il s'appelle comment, le monsieur?', ao que a chefe respondeu 'Pêdrrô' e ela disse 'c'est quoi, Pêdrrô?' e eu disse 'je suis Portugais' e ela disse 'j'aime bien le portugais' e a conversa morreu aí porque eu não sabia que mais dizer. Madame Mercier estava encantada com Madame Qui e as duas passavam as horas numa amena cavaqueira sobre assuntos que nunca descobri quais eram porque me limitava a passar pelas duas enquanto fazia gasimetrias ao senhor Fernandes ou tentava colher sangue arterial sufiente para encher quatro tubos porque a enfermeira não tinha conseguido puncionar as veias do doente - eu, com o jeitinho que tenho, sangue arterial, quatro tubos. Sim.

Nos dias seguintes, sempre que chegava ao serviço e passava pelo quarto de Madame Qui ela fazia-me uma festa e ficava toda contente, tendo mesmo chegado a pedir-me para me tirar uma fotografia com o seu telemóvel, ao que eu respondi com um valente 'oui, bien sûr!' e fiz o meu sorriso amarelo típico das fotografias. Madame Mercier a certa altura começou a parecer mesmo um bocado fatigada, porque pelos vistos M. Qui gostava verdadeiramente de conversar e acabava por incomodar a velha.

Até que um dia, quando passava no corredor, me dei conta de que o quarto estava um bocado silencioso. Espreitei e vi que Madame Mercier não lá estava, tinha tido alta na tarde do dia anterior, e Madame Qui estava sozinha, muito calada, enquando escrevia num pedaço de guardanapo. Entrei e perguntei-lhe se estava tudo bem, ao que ela, com uma cara muito inexpressiva, respondeu 'Oui, ça va, merci'. Não era a Madame Qui do costume, aquela que gostava de ter a televisão ligada aos altos berros para ver desenhos animados pela manhã ou que por vezes começava a cantar espontaneamente e animava o serviço com a sua voz desafinada.

Eu não liguei muito ao 'ça va' insonso da doente e fui à minha vida - ela estava em bom estado de saúde, já não tossia sangue e ia ter alta nesse dia, enquanto que dois quartos à frente estava o senhor Lemos, que não falava francês e só se entendia comigo, à beira de um estado comatoso.

Algum tempo mais tarde, quando voltava para o gabinete dos médicos, ouço a voz de Madame Qui enquanto passava pelo quarto dela - 'Monsieur?'. Voltei atrás e entrei. Ela estava sentada e, com um ar muito sereno, olhou para mim e disse 'aqui tem', enquanto me entregava o pedaço de guardanapo onde a tinha visto escrever alguns minutos antes. Pensei que fosse um bilhete de amizade ou de agradecimento por qualquer coisa que eu de certo não tinha feito, mas depressa me apercebi de que não se tratava de coisa boa. Quando lhe perguntei o porquê do que tinha escrito, ela respondeu-me que tudo o que tinha a dizer estava ali e que eu agora deveria fazer o que quisesse com o bilhete, dá-lo a quem me apetecesse.

Madame Qui queria morrer - 'J'ai bien réfléchi', explicou-me.

Na carta que escreveu, dizia que tinha reflectido muito sobre o assunto e que a sua vida não fazia sentido. Falava dos dois grandes amores da sua vida, o Sebastian e o Michel, e dizia que não merecia a dor de os não poder ter por ser como era. Desenhou corações com setas e caras tristes e pediu desculpas à mãe por estar prestes a fazer o que ia fazer e por ter sido sempre um fardo e estado continuamente no centro das preocupações. No fim, voltava a dizer que estava bem era na morgue e que a sua vida tinha terminado.

Enquanto lia a carta, Madame Qui deitou-se em posição fetal e começou a chorar, como se estivesse à espera. Como se a simples ideia de se matar fosse tão forte que se concretizasse sem ser preciso fazer mais nada.

Eu não sei consolar doentes suicidas em Português, quanto mais em Francês. Dizer as palavras certas numa situação destas? Empatia, conversa, paninhos quentes? Não, até porque o mais certo seria dizer asneiras e complicar ainda mais as coisas. Saí do quarto dizendo 'je reviendrai tout de suite', deixei a porta aberta e fui ter com a chefe de clínica. Quando lhe mostrei o guardanapo, a reacção inicial dela foi começar a rir-se, mas depois percebeu que o assunto era sério. Tratou logo de telefonar para o psiquiatra de serviço a pedir uma avaliação, mandou trancar as janelas do quarto e fez questão de que a porta ficasse sempre aberta.

Foi depois comigo ao quarto de M. Qui e conseguiu falar com ela e perceber um pouco melhor o que se passava. Madame Qui voltou a falar da morgue e da mãe e do amor e de toda a reflexão que a tinha feito concluir que já não mais queria viver, reiterando várias vezes que não queria que a mãe soubesse que ela planeava matar-se.

Madame Qui não saiu do hospital naquele dia. Hoje, sábado, ainda lá está, e lá irá permanecer até pelo menos a próxima terça-feira. Está medicada com antidepressivos e hoje, quando me viu, disse-me um grande 'bonjour' e que se sentia bem melhor e que agora só queria ir para casa.

A mãe de Madame Qui acha que a filha está bem e que só vê filmes de terror a mais.
Read More 2 comentários | Publicada por Pedro edit post

2 comentários

  1. Catarina on 17 de outubro de 2009 às 23:41

    Xeeeeeeei granda texto!
    Fiquei aqui colada uns bons minutos!

    A Madame Qui (que tem um belo apelido!) devia era conhecer o Ricardinho que eu conheço. Também tem Trissomia 21, é escuteiro, passa a vida na biblioteca e conhece mais gente em Rio Maior do que muito boa gente (incluindo eu!!). A mim trata-me por "Tatarina, florzinha do meu tanteiro!" ;)

    Gostei de te ler! Boas aventuras aí por Paris!

    Beijaaa*

     
  2. Pedro on 18 de outubro de 2009 às 22:25

    lol eu estico-me... :) Yep realmente é um apelido peculiar, houve uns quantos trocadilhos à pala disso no serviço durante a semana passada... lol O Ricardinho parece ter uma boa vida, mas aposto que de vez em quando também sofre males de amor!! :p

    Hehe beijinhos

    P.S. - ainda não consegui falar com a recepção da maison sobre o teu caso porque noutro dia tive um desentendimento com o senhor e estou a tentar ver se apanho uma outra recepcionista que é mais simpática. lol mas quando tiver notícias digo logo!

     


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