Dezembro! Hmm vendo bem, já devia ter actualizado isto há que tempos - agora fico sem saber bem como introduzir tantos pequenos episódios interessantes, como aquele em que a AC começou a chorar em plena visita ao serviço, ou o dia em que a Madame A. faleceu, ou até mesmo a tarde em que o Clément me levou à associação de estudantes da faculdade para me mostrar fotografias do CRIT.
OK.
A manhã em que a AC começou a chorar em plena visita é, como dizer, tabu - comecemos portanto por aí. Já devem ter percebido que a minha chefe de clínica não tem propriamente 'simpática' ou 'amorosa' como nomes do meio. Não. Ela vai directa ao assunto, fala com os externos como nós fôssemos os capangas dela e não hesita sob circunstância alguma em criticar o nosso trabalho. Mas não se fica por aí - até com os doentes tem um tom de voz pouco empático e dá as más notícias de forma cirúrgica, isto é, muito bem estruturada e ponderada, como se estivesse a ditar um exercício de matemática. Para ela, anunciar à madame L. que ela tinha uma neo da mama metastizada para o pulmão, cérebro e ossos requereu exactamente a mesma energia e contenção emocional que dizer ao monsieur R. que ele tinha uma legionelose - ou pelo menos assim pareceu.
Não admira, portanto, que ninguém morra de amores pela AC. É comummente aceite que do ponto de vista visual - vááá, redundância - o estágio de medicina interna na pneumologia é muito bom, mas toda a gente sabe que o ambiente é de cortar à faca. As pessoas falam mal dela pelas costas e entreolham-se de forma cúmplice quando lhe dá uma crise de mau génio. Consta até que um dia uma das enfermeiras - a Gaelle - começou a chorar com tamanha falta de trato. Hmm. Eu acredito mesmo que isso tenha acontecido, porque todos os dias, às 9h, quando nos fechamos no posto dos enfermeiros para fazer o ponto de situação, parece que a sala vai explodir, tal é a energia negativa que existe entre elas. Em boa verdade, depois de dois meses e meio de estágio, ainda não consegui perceber bem qual delas é a pior. Independentemente disso, porém, a Gaelle é a enfermeira mais torcida e coninhas que já conheci - podia ser estúpida apenas connosco, estudantes e médicos, recusando-se a preparar o material para as punções pleurais e lombares e não admitindo interrupções do seu sagrado pequeno-almoço nem quando precisei de um robinet para tirar sangue arterial ao monsieur Lemos. Mas não - com os doentes consegue ser pior. Fala mal deles abertamente e vê-os como um fardo. Noutro dia foi expulsa do quarto pelo monsieur Zemzemi, um jovem de 20 anos que tinha feito um pneumotórax espontâneo, porque tinha sido fisicamente e verbalmente bruta com ele, tratando-o por tu e dizendo que se estava pouco a lixar para ele só porque o doente se tinha levantado e corria o risco de o dreno sair do sítio.
Bom.
AC, Gaelle, prazer.
Chegou então o dia em que tínhamos no serviço um doente muito jovem com uma paralisia cerebral que nem devia lá estar internado. A alimentação do menino era muito difícil e ele tinha problemas de deglutição, pelo que era tudo administrado por sonda nasogástrica utilizando para o efeito seringas de 50 ml. Na véspera, a AC tinha tratado disso com uma outra enfermeira que estava de serviço e as coisas tinham corrido bem e de forma célere. Mas naquela manhã quem tinha feito isso era a Gaelle e a sua ajudante, e ambas estavam indignadas porque tinham demorado 15 minutos a alimentar o doente, dizendo que para elas tinha sido literalmente uma tortura passar aquele tempo todo a fazer o serviço e acrescentando que lhes fazia impressão ver o estado do rapaz, pelo que se recusavam a fazê-lo novamente.
Era dar-lhes porrada sempre do mesmo lado. E quando estivesse em sangue, passar para o outro. Filhas da puta. Se eu fosse médico, ter-lhes-ia dito das boas e chamado alguém para ver aquela miséria vocacional. A AC, porém, face às dificuldades constantes que enfrenta da Gaelle, disse-lhe que não havia problema nenhum e que ela mesma fazia questão de alimentar o menino, duas vezes por dia. A Gaelle voltou a falar de tortura e dos 15 minutos e as coisas ficaram por aí.
Mais tarde, durante a visita do Practicien Hospitalier (o chefe da pneumologia, que, qual Dumbledore, 'aparece' duas vezes por semana), a AC começou a contar a história e, do nada, largou num pranto e depois acalmou-se e finalmente recomeçou a chorar, dizendo que estava muito cansada e que não era justo e que os doentes mereciam receber os melhores cuidados de todo o pessoal do serviço, sobretudo tratando-se de um jovem debilitado àquele ponto. Hmmm. Eu e o Clément olhámos um para o outro, a Raphaelle também ficou muito desconfortável e o PH tentou acalmar a Anne Cécile, não deixando porém de dizer que com ele a Gaelle nunca tinha feito cenas daquelas.
Karma.
Nunca mais se falou desse episódio. Nem eu, nem o Clément, nem a Raphaëlle, nos nossos momentos de mal dizer e frustração colectivos, voltámos a tocar no assunto. É como se o nervous breakdown da AC nunca tivesse acontecido.
Falando de meltdowns, hoje foi a vez da Raphaëlle. Estávamos a ver uma doente de 28 anos que tinha vindo com uma crise forte de asma e estava a saturar a 89% mesmo com 6 litros de oxigénio, quando a mulher de repente começa a falar de forma agressiva, dizendo que sempre que se queixava de alguma coisa ou chamava os enfermeiros porque tinha dores ninguém fazia nada e não chamavam os médicos. Falou mal da Raphaëlle, que alegadamente lhe tinha dito 'je viens vous voir tout de suite' e só tinha vindo duas horas depois e até arranjou forma de implicar comigo porque eu ainda não sabia a que horas é que ela ia fazer a TAC. A certa altura a mulher começa mesmo a tentar retirar o catéter que tinha na mão direita e a dizer que se ia embora do hospital porque ali ninguém tratava dela. A Raphaëlle começou também a ser agressiva, dizendo que a senhora estava a gozar com ela e que não era a única doente que tinha para ver, começaram a chamar-se de puta e burra uma à outra - mesmo - e de repente só vejo a interna sair do quarto e bater com a porta. Desapareceu do serviço, eu e o enfermeiro de serviço tivemos de chamar a AC - que tinha partido numa das suas múltiplas misteriosas escapadelas quotidianas -, e esta por seu turno chamou a psiquiatra. Conclusão: a Raphaëlle regressou meia hora mais tarde, com os olhos inchados e uma voz embargada, e eu passei os restantes vinte minutos da minha manhã a ouvir a psiquiatra fazer perguntas do tipo 'como é que se sente em relação a isso? e como é que viveu a morte da sua sobrinha? e como é que vê este afastamento dos seus filhos?'.
Há dias assim.
Mais coisas - a minha apresentação correu bem, e pensei que a AC tinha sido verdadeiramente simpática, só me interrompendo de 5 em 5 minutos. No final toda a gente bateu palmas, o que nunca tinha visto acontecer desde que estou em França. Gosto de pensar que o aplauso se deveu à qualidade da apresentação, mas sei bem que só bateram palmas porque eu tinha feito o esforço de expor um caso - que por acaso era muito interessante - em francês durante uma hora para 20 pessoas. Depois vieram em privado dizer-me que a AC tinha sido muito pouco simpática comigo porque me estava sempre a interromper, ao que eu respondi que ela até tinha sido invulgarmente agradável. E tinha mesmo! O Clément concordou comigo.
Se ainda não adormeceram, posso falar agora um pouco da tarde em que fomos colher ramos de carvalho francês para a Lotti levar para a mãe. Em Setembro, quando andávamos a fazer turismo pela cidade, lembro-me de ela ter falado algumas vezes dessa árvore com folhas vermelhas muito bonitas e que tinha sido trazida ao conhecimento da mãe por um florista do Príncipe Real. Tinha então ficado assente que da próxima vez que a Carlota fosse a Portugal lhe levaria uns ramos de carvalho francês, já que a mãe tinha mesmo gosto nisso.
Dois meses mais tarde - Outono. Carvalho francês? É possível, mas folhas vermelhas nem vê-las. Na verdade, os ramos que a Lotti cortou da árvore poderiam ter vindo de qualquer mata selvagem - ou não - das areias de Rabo de Peixe. Eram simples ramos envelhecidos pelo tempo que, embora outrora tivessem sido amarelos e depois vermelhos, agora não passavam de folhas murchas. Foi pena, porque as folhas até são giras quando estão vermelhas. Mais tarde, no autocarro a caminho do aeroporto, um estranho pisou o saco onde a Carlota levava os ramos e foram poucas as folhas que ficaram intactas.
Voilà les photos:
Aniversário
O dia foi bom! De manhã hospital - cá não foi feriado -, à tarde fui para o Marais e à noite estive com os meus novos amigos a jantar.
E pronto, até à próxima.
Pedro*
A tua escrita é simplesmente deliciosa! Não há maneira de não rir com aquilo que escreves mesmo depois de já saber os episódios...
Beijinho*
Carolina
gostei de ler porque tambem tenho passado por episodios pouco agradaveis por ca... mas interessantes do ponto de vista cientifico, etico e humano.
se quiseres um dia conto-tos.
beijinhos