Eu sei, bem sei - tantos e tantos dias sem escrever nada. Mas por vezes a inspiração não abunda e contar certas coisas uma e duas e três vezes ao telefone acaba por fazer com que sinta que já tudo foi dito. A verdade, contudo, é que há muitos pequenos episódios que, por esquecimento ou por falta de importância, não partilho no Skype ou ao telemóvel ou nas sessões telepáticas de envio mútuo de energia positiva que tenho com todos vós. Ahhhh - profundo.
Hoje o dia está cinzento - é uma daquelas tardes em que não apetece fazer nada para além de tossir ou ver um filme ou ler o Harrison's. Vou portanto contar o que me vier à cabeça - assim, hmmm, abruptamente.
Desde há umas semanas que já não me sinto turista em Paris. Continuo a sair para ir ver museus ou simplesmente para contemplar a cidade enquanto tento integrar tudo o que vejo - as pessoas, os edifícios, as árvores que agora são troncos, o rio. Continuo a fazer caminhadas com ténis de sola rasa - estúpidooo, parece que ando descalço -, o que faz doer os pés e mijar mioglobina. Continuo a ter de olhar para o mapa das linhas de metro quando vou para sítios mais distantes. Mas no fundo - no fundo, já não sou turista. Já não ando com a máquina fotográfica para todo o lado nem faço questão de ir ver todo qualquer museu que exista. Tenho tempo, muito tempo, e deambulo com calma.
Quando olho para os últimos dois meses apercebo-me de que já passou muito, muito tempo e as saudades de casa são imensas. Sinto falta de tantas coisas - dos almoços e jantares deliciosos em casa da minha irmã e de me rir a bandeiras despregadas com as suas histórias no hospital, das piadas do Mário, de ficar horas ao telefone com os meus pais sem ter de lhes explicar que o botão do som no skype tem de mudar de posição para que eles me ouçam. Sinto falta da Carolina e da nossa vida boa e simples e cheia de momentos felizes e cumplicidade. Sinto falta de chatear o Francisco para irmos correr para Monsanto ou para ficarmos sentados a ver televisão ou a conversar sobre assuntos profundos. Tenho saudades da minha turma - de me rir estupidamente pelos motivos mais absurdos e olhar para o Garrido ou para o David e ter de sair do quarto porque o homem do toque rectal começou a chorar - quando agora faço toqueS rectaIS ao senhor Lemos não me rio, porque estou sozinho e sozinho as coisas não têm piada - ou porque o homem da facada no braço está a contar uma história mirabolante que mal percebo. E da Luísa que tem sempre tudo organizado e faz com que o trabalho administrativo pareça fácil. E do Oliveira, com quem tenho conversas muito boas. Sinto falta do rio logo de manhã ao chegar ao Egas com a ponte e o sol e o céu limpo e gente a fazer jogging. E dos frangos que compro ao pé de minha casa. E de ser pirata cibernético e fazer download ilegal séries e filmes que sei que não vou ver mas não faz mal - não faz mal, posso bem com 3 anos de prisão. Tenho saudades de ir beber cerveja com o João Pinto ou de ir para a casa do Paulinho e ouvir as histórias dele - rio-me com gosto; e às vezes também choro. E sinto falta dos meus primos - de me partir a rir com a Catarina e a Bia e de falar com a Cristina sobre TUDO; há coisas que não mudam e ainda bem. Tenho saudades do meu carro verde que morre inexplicavelmente de temps en temps - alguém que se lembre dele, tenho para mim que neste momento está em cinzas e irremediavelmente apagado. Tenho saudades de conduzir!!! Sinto falta do cinema do colombo ou do el corte inglés - cinema ao fim-de-semana é tããoo bom. Tão bom. E das pizzas na capricciosa porque nos apeteceu almoçar bem ou das idas à marina de Cascais para comer bitoque de secretos de porco preto. Tenho saudades da minha casa. E de estar como eu quero e me apetece sem pensar que a qualquer momento me podem vir bater à porta, a não ser que seja a Maria João com bolos ou comida ou a Carolina com abracinhos. E de ter ou uma ou a outra a dormirem tardes inteiras no sofá da sala enquanto eu tento estudar. E do pão que compro no meu bairro. E de ir ao estádio e ver a águia. E de comer gelatina do continente depois de todas as refeições.
A minha vida em Lisboa é tão simples e tão boa.
Ouço tantaaa música. Aqui em casa, como os cento e muitos quartos partilham a mesma ligação à internet, há pessoas que disponibilizam a sua lista de músicas do itunes publicamente - eu aproveito-me disso e já descobri tantas bandas diferentes à custa da Mariana do quarto 128, com quem nunca sequer falei nem imagino mais gorda.
Houve Verão de São Martinho em Paris!! Na quarta-feira fomos ao museu Marmottan Monet - no 16º arrondissement, onde o dinheiro abunda e até os carros que se vêem na rua são de outro nível - e, apesar do frio, estava um sol bem bom. E no dia antes até tínhamos comido castanhas assadas.
Entretanto, no hospital, muita coisa mudou - a interna é nova, por exemplo. Chama-se Raphaëlle e é bastante diferente da Karine nalguns aspectos: há dias em que chega mais tarde do que eu - mas nunca mais tarde do que o Clément, isso é inatingível - e nunca, mas nunca, organiza os resultados das análises dos doentes, o que resulta no dobro do trabalho para mim. Mas, ao contrário da Karine, explica-me coisas e faz questão de que eu vá com ela ver os doentes em vez de ir sozinho. Gosto disso, porque afinal ainda não sou médico e é expectável que me ensinem coisas. Quando faço algum trabalho que não é da minha obrigação - embora a chefe de clínica pense ser -, como enviar faxes ou andar léguas para ir buscar o exame de um doente à radiologia central, ela agradece-me entusiasticamente. E mesmo não seja tão mexida como a Karine, a verdade é que até agora ainda não lhe descobri nenhum distúrbio de personalidade ou tique obsessivo-compulsivo. Menos mal!
Quanto à chefe de clínica (Anne Cécile), as coisas vão de mal a pior - o que vale é que não particularmente comigo. Acho que já aqui tinha dito que agora trabalho por antecipação - tento perceber pelas conversas da interna com a Anne Cécile o que é que é preciso fazer e trato logo dos assuntos - ECGs, gasimetrias, telefonar para os hospitais a pedir relatórios de hospitalizações passadas, telefonar para os familiares dos doentes a perguntar coisas, fazer testes neurológicos ou de avaliação de demência aos doentes, fazer as minhas observações e exame objectivo aos novos pacientes e assentá-las nas folhas dos externos. Escrevo tudo num papel e passo a manhã a fazer 'checks' nas coisas que tenho de cumprir, e quando a chefe de clínica me pede para as fazer já está tudo arrumado - o que é excelente e me faz ouvir alguns très biens, mas não mais do que isso.
O Clément, por outro lado, tem levado uns raspanetes - é frequente esquecer-se que os doentes fizeram este ou aquele exame e não olha para o resultado, por vezes deixa as agulhas das gasimetrias praticamente de fora das caixas amarelas dos cortantes por já não haver mais espaço, etc. A Anne Cécile não gosta disso - na verdade tenho a forte convicção de que há muito poucas coisas neste mundo de que a Anne Cécile goste - e chateia-o com comentários do tipo 'mas tu não te interessas pelos teus pacientes?', o que o faz sentir-se revoltado e pouco motivado. Num dos dias em que estávamos os dois sozinhos no gabinete dos médicos a escrever coisas sobre os nossos doentes, ele fechou a porta subitamente e perguntou-me 'Pédrrô, achas mesmo que eu não me interesso pelos meus pacientes?'. Eu olhei para ele, incrédulo com o facto de ele ainda sequer ligar às críticas que a nossa chefe de clínica nos faz, e respondi 'não, e estou a cagar-me para o que a Anne Cécile pensa - tu devias fazer o mesmo'. De seguida, ele continuou dizendo que nunca tinha tido um estágio em que o tratassem daquela maneira e que sentia que ela só nos deitava abaixo e nunca valorizava as coisas boas que fazíamos. No fundo, expressou verbalmente todas as conclusões a que eu já tinha chegado no final da primeira semana do estágio. A partir desse tête-à-tête com o Clément, passámos a ser cúmplices nas investidas contra a AC. Um dia, quando na visita estávamos a discutir um paciente e ela o mandou ir enviar um fax, ele disse 'non, j'aimerais bien rester et participer à la discussion de mon patient', ao que a AC respondeu 'oui, bien sûr' e me fez perceber que, de facto, não podemos ficar calados quando nos sentimos explorados.
Na sexta-feira passada, estávamos todos no gabinete dos médicos a discutir uma das minhas doentes - a Madamme Ho (sim, nome ominoso e passível de trocadilhos em mais do que uma vertente), Cambojana de 80 anos com idade aparente de 60 que em francês só sabia dizer 'oui', 'non', e 'mal', quando a AC olhou para o dossiê e viu que não havia observações do externo - eu, portanto - registadas. Na verdade o que tinha acontecido era o seguinte: a senhora tinha entrado na terça-feira e eu, como não conseguia comunicar com ela, falei com a Raphaëlle sobre o assunto e ela explicou-me que já tinha telefonado ao filho da senhora, que falava francês e lhe tinha dado todos os detalhes importantes para o processo, e portanto não era preciso eu sequer fazer o esforço de comunicar com a doente. Fui, contudo, fazer o exame objectivo e observá-la em conjunto com a interna, que depois escreveu as suas notas no dossiê da senhora. Ora na quinta-feira, quando a AC me pergunta pelas minhas observações, eu disse-lhe que não conseguia comunicar com a doente e que por isso havia detalhes como 'fumou durante quantos anos' ou 'qual é o número de telefone do seu médico de família' ou 'que medicação é que toma' que eu não sabia mas que em princípio estavam no dossiê da paciente. Ela perguntou-me depois pelo registo do exame objectivo e eu disse que tinha ido observar a mulher juntamente com a interna, pelo que achei desnecessário estar a repetir informação. Foi então que ela olhou para mim e, com o seu olhar de fdp, me disse 'ainda que seja palavra por palavra a mesma informação, tu também tens de a escrever'. Nessa altura, eu, já um bocado farto das merdas da AC, olhei para ela e, com toda a calma do mundo, disse 'mas qual é a utilidade disso?'. Os olhos do Clément, no outro lado da sala, iluminaram-se numa expressão de apoio. E fiquei espantado quando a AC me respondeu num tom de voz doce que para ela as nossas informações enquanto externos eram muito importantes e que ela as valorizava sobejamente. Eu disse 'd'accord' e o assunto morreu ali.
Minutos mais tarde, ela começa a fazer perguntas sobre alergias, intoxicações medicamentosas, se a doente tinha animais em casa, se fazia as suas compras sozinha, se toda a vida tinha sido dispneica, etc. etc. etc. e eu respondia que não sabia, porque a interna é que tinha falado com o filho. Mandou-me então, novamente chateada e a falar num tom de voz aceso, ligar ao filho da doente a perguntar aquilo tudo - eu peguei no telefone e marquei o número. O senhor atendeu, eu pus a chamada em alta voz (daqueles em que toda a gente na sala ouve o interlocutor mas do outro lado ele só me ouve a mim, que tenho o telefone na mão) e comecei a falar com ele no meu melhor francês - esforcei-me tanto. E a coisa correu, lá fui obtendo mais algumas informações que eram precisas e que segundo a AC ainda não tínhamos, nomeadamente as películas de uma TAC que era preciso que o filho nos viesse trazer ao hospital. O senhor perguntou então se podia passar no serviço às 17h para entregar as imagens, ao que subitamente a Anne Cécile responde 'Não, a senhora vai ser transferida!' - pequeno pormenor que ela não me tinha dito. É aí que o filho começa a perguntar 'mas por que motivo é que você quer saber isto tudo? o que é que se passa com a minha mãe? porque é que até agora ela estava nesse serviço e agora vai ser transferida?'. Oops. Madame Ho estava a saturar a 81%, eu já lhe tinha feito duas gasimetrias que não estavam nada famosas e era evidente que a senhora precisava de ventilação. Eu sabia tudo até aí e sabia explicar essa parte. Mas quando a AC me diz de repente que a doente vai ser transferida sem nunca me ter explicado que no nosso serviço não há equipamento de ventilação e que não havia ainda cama para a doente noutro sítio com condições, a coisa começou a correr mal. O senhor ficou inquieto, falava francês com pronúncia asiática que eu não percebia na totalidade, perguntava-me o que é que se passava com a mãe, e do outro lado estava a Anne Cécile aos gritos comigo a ditar-me o que eu tinha que explicar ao homem e, estúpida como uma porta, incapaz de pegar no raio do telefone. Se as facas mentais que eu lhe estava a mandar naquele momento cortassem mesmo, uma peste a carne picada podre teria invadido toda Paris. A interna não se mexia, eu repetia as palavras da AC ao telefone misturadas com outras inventadas, o Clément do outro lado estava com uma cara completamente incrédula e começou mesmo a desenroscar o cabo do martelo de exame neurológico e a fazer sinal de que o ia enfiar no pescoço da AC - mesmo. Foi nessa altura que eu, o Erasmus Português que não domina todo o vocabulário francês necessário para uma conversa daquelas, rodeado de três inúteis nativos que ou não se mexiam ou gritavam, disse 'ça suffit', entreguei o telefone à interna, disse 'pour moi ça c'est très difficile' e fui embora. Desapareci, fui fazer o ECG quotidiano ao monsieur Lokemo que tem uma tuberculose multirresistente - a minha tosse constante ou é gripe A ou tuberculose - e quando voltei estava tudo mais calmo. Estava a enfermeira a perguntar à chefe de clínica quem é que mais uma vez tinha deixado a agulha da gasimetria fora da caixa amarela, perguntou-me se tinha sido eu e quando eu respondi que não a AC vira-se e diz 'o Pedro não faz coisas dessas. Je suis vraiment désolée, Pedro.', referindo-se ao episódio do telefone. Eu disse 'pas de problème', mandei-a à merda mentalmente e pronto, espero que a AC, mãe de família e médica gira que se parece muito com a Carla Bruni, a partir de agora tenha algum bom senso e mais respeito pelos externos, que passamos as manhãs a correr de um lado para o outro no serviço enquanto nas outras secções os meus colegas estão fora do hospital antes do meio-dia.
Isto deu-me fome.
LOL... Adorava ter ouvido essa conversa com o filho da mulher! Terrivel!! Lolol!
Ohhhh... Não precisas de ter saudades... Tas quase quase cá! :D
P.S.- Fico feliz em saber que de facto dás valor às nossas conversas reveladoras! Afinal o meu paleio não é em vão!! LOL ;)
Cris*
Tenho realmente saudades tuas, fazes-me muita falta. Sinto falta de ir para a Quinta da Luz com uma panela de comida embrulhada em toalhas para manter a comida quente, de ir comprar-te chocolates nas vésperas dos exames, de passar as tardes de domingo contigo no sofá a ver "episódios", dos almoços de domingo e dos telefonemas "Maria João, não percebo nada disto, acho que vou chumbar"...Sinto falta mas sei que vai tudo voltar e que isto tudo só nos aproxima ainda mais.
Um beijinho muito grande,
MJ