É por entre pequenas paragens para ir cagar que vos escrevo - sim, verdade seja, três dias foi o máximo de tempo que consegui aguentar no meu estágio de Pediatria sem apanhar o Rotavírus. Maldito sejas, o meu plano era que não chegasses antes do final de Janeiro, para então servires de desculpa aos dois dias em que não irei ao estágio por estar em Estocolmo.
4 de Janeiro, Dia 1
Yay, um novo estágio. Só de pensar nas maravilhas de não ter de levar com as imprecações constantes da Gaelle, as exigências da Anne-Cécile e a falta de sal da Raphaëlle, nem consegui dormir convenientemente - ou talvez estivesse apenas nervoso para o meu primeiro dia rodeado de crianças. Não são os putos que me amedrontam, porque até acho que quando estou sozinho com eles consigo estabelecer um nível de interacção aceitável sem os fazer sentirem-se como se tivessem uma idade mental correspondente a dois dias. A presença da mãe e do pai é que me incomoda, porque nunca sei bem o que dizer nem como interagir com tantas variáveis ao mesmo tempo - a minha inteligência prática e social nunca foi das melhores, bem sei, e parece que durante três meses vamos ter de ajustar contas.
Bom, nem sei bem por onde começar.
Talvez dizer que, com o novo estágio, chegam sempre pessoas diferentes. Agora há outro Erasmus no serviço, o que tem algumas vantagens - não sou o único que em certos instantes se aliena e amorfa completamente, como se a perenidade do momento fosse Eu e as coisas girassem à minha volta, confusas. Várias. E outros tantos pontos negativos: antes eu era um Erasmus burro e quando conquistava alguma coisa, por pequena que fosse, era uma festa. Agora, vou ter mesmo que step up my game para não ficar rotulado como o Erasmus burro. Já comecei a estudar, y'all. Já comecei a estudar.
O José é o meu novo colega Erasmus. A primeira vez que nos falámos foi durante o meu estágio de Medicina Interna em Kremlin Bicêtre, num almoço em que amigos em comum se juntaram e nós, por arrastamento, ficámos a saber que éramos ambos Erasmus. Ele vem de Espanha - Alicante - e também está a fazer o 5º ano. Fala bem francês, embora não com uma pronúncia que fique a dever à perfeição - há alturas em que dou por mim a pedir-lhe para repetir uma frase por duas e três vezes. O José é um fixe, a verdade é essa, e quando soube que íamos estar os dois a fazer Pediatria fiquei contente.
Na manhã de segunda-feira tínhamos combinado encontrarmo-nos na paragem do eléctrico às 8h, já que só assim a demorada viagem de autocarro que se seguiria nos faria chegar ao Hospital Antoine-Beclere às 9h. Éramos quatro os Erasmus que seguiam juntos - connosco ia uma espanhola que está a fazer Medicina Interna e uma italiana que está no serviço de Cardiologia. Entrámos no autocarro felizes da vida por sermos dos primeiros e termos lugares sentados. Abancámos e ficámos à espera que partisse enquanto falávamos das nossas expectativas e receios para o novo estágio. Foi então que o condutor se vira lá da frente e diz 'o autocarro está avariado', o que me fez dizer três ou quatro palavrões. Como estávamos sentados nos bancos lá de trás, fomos os últimos a entrar no autocarro de substituição, o que fez com que tivéssemos que passar a viagem de 45 minutos em pé e a levar encontrões de parisienses mal encarados.
Chegámos ao hospital já às 9:10 e conhecemos as nossas novas colegas. Ao todo somos nove externos, e de rapazes só mesmo o José e eu. As miúdas demoraram duas horas a decidir a rotação pelas várias secções do serviço como se se tratasse de ciência de foguetões e, finalmente, ficou decidido que eu iria passar o mês de Janeiro na enfermaria dos miúdos grandes (>6 meses), duas semanas a fazer urgências, um mês a fazer enfermaria dos pequenos (<6 meses) e, finalmente, as duas últimas semanas de Março novamente na enfermaria dos grandes.
Assim sendo, a enfermaria onde vou estar durante o mês de Janeiro tem 21 camas, o que perfaz uma média de 4/5 doentes por cada um dos cinco externos. Se fosse na Pneumo, onde eu tinha 5 doentes constantemente ao meu cuidado, não me importaria, já que por vezes os internamentos eram longos e sempre apanhava uma ou outra tuberculose multirresistente que os fazia permanecerem no serviço pelo menos durante dois meses.
Mas os miúdos são um negócio diferente. Duros de roer, as hospitalizações têm uma duração curta, o que faz com que os meus dias sejam verdadeiras competições de sprint que, à partida, já sei que vou perder. Há dias em que o número de novos miúdos ascende a 8, o que significa 8 novos dossiês para preparar e 8 novas observações para fazer. Claro que não sou eu a fazer as 8, mas se dois ou três deles calharem nas minhas camas, estou tramado.
Sair impreterivelmente à uma da tarde não existe, naquele serviço. O mais comum é as tropas serem dispensadas pelas 14, 14:30. Mas eu não me importo - antes pelo contrário! Agora há dois chefes de clínica super agradáveis e disponíveis - à memória vêm-me os momentos em que fazia perguntas simples à AC e ela respondia rispidamente 'isso tens de perguntar é à interna, não é a mim, eu sou chefe de clínica [of shit]' - e quatro internos que até me fazem sentir desconfortável por serem tão relaxados e simpáticos. Convidam-nos para irmos ver os doentes juntos, embora quem escreva no dossiê sejamos sobretudo nós, os externos. Na Pneumo os meus níveis de catecolaminas andavam ao rubro porque sentia que nunca ninguém estava satisfeito com o meu trabalho, ao passo que aqui tenho medo de passar por overachieving asian - sem ofensa, asians.
Vou ter, portanto, de aprender a moderar-me.
Às três da tarde chegava a casa, depois de na viagem de autocarro ter discutido Sócrates, Saramago e Ryanair com o José.
5 de Janeiro, Dia 2
O dia ficou marcado por um dos episódios mais estranhos que já presenciei desde que estou em França.
A Layla é uma Erasmus alemã. Como todos os outros Erasmus alemães, fala Francês impecavelmente, como se mais nada tivesse feito na vida que aprender a língua, mas é um pouco peculiar. A Sté e a Carlota, inicialmente, fizeram-me achar que a singularidade dela passava apenas pelo buço pronunciado, mas mais tarde comecei a perceber que se tratava de algo mais. Lembro-me de, no nosso jantar de Natal na maison internacional com todos os amigos Erasmus, ela atirar-se à comida como se não houvesse amanhã e não hesitar em tirar o último bolinho de côco quando a pessoa ao lado dela aparentemente ainda não tinha comido nenhum. Ainda assim, não a achava tão estranha como a Claudia, de quem tenho um medo inexplicável - talvez por ter um olhar assustador e sorriso de Grinch e naquele jantar ter mesmo usado uma boina de Pai Natal.
O que é facto é que sempre que vejo a Claudia tento arranjar uma desculpa para não meter conversa e não a olhar directamente nos olhos - raios laser, tenho medo - enquanto até à terça-feira tinha sido mais ou menos indiferente à Layla.
A verdade é que a Layla estava supostamente connosco no estágio de Pediatria. O José já me tinha dito isso, mas, quando na segunda-feira tinha olhado para a lista dos externos e não havia o nome dela escrito em lado nenhum, não pensei no assunto. E quando ele comentou a estranha ausência dela, tanto da lista como da sala de recepção aos externos, também não fiz grande caso.
Na terça-feira, porém, a Layla estava no autocarro logo de manhã. Explicou-nos que não tinha vindo ao estágio no dia anterior porque perdera o comboio na Alemanha e tivera de apanhar um outro mais tarde, onde veio em pé numa viagem de quatro horas. Esta imagem pôr logo em perspectiva os 45 minutos em pé da viagem de autocarro do dia anterior, pelo que não mais me queixarei desse episódio.
Tinha portanto a Layla vindo em pé durante quatro horas, o que para ela era normal. Aliás, o que a estava a chatear naquela manhã era a notícia que lhe acabávamos de dar relativamente às horas tardias a que o estágio de pediatria acaba. Ela perguntou-me se eu achava que eles nos deixavam ir almoçar das 13 às 14 e depois voltar ao estágio para acabar o trabalho, ao que eu respondi 'não'. Disse-me então que assim não podia ser, sobretudo naquele dia, porque se tinha esquecido da sua banana e do seu pão integral dentro do quarto e não sabia como ia chegar às duas da tarde sem comer.
Quando entrámos no hospital, a primeira coisa que a Layla fez foi debandar - disse-nos que tinha de ir comprar um pão com chocolate para comer a meio da manhã, caso contrário desfaleceria.
Até este preciso momento, aquela foi a última vez que vi a Layla.
Passámos a manhã calmamente no serviço, a ver os nossos doentinhos. Fiz uma menina linda de 1 ano chorar - em frente AOS DOIS PAIS - quando lhe fui medir o perímetro craniano, e embora lhe tenha pedido muitas desculpas acho que ela não percebeu e continuou num berreiro. Shit shit shit.
Ao final da manhã, enquanto víamos as 20 estações de autocarro passarem lentamente e discutíamos as motivações da ETA, o José fez-me notar que de facto a Layla não mais tinha dado sinais de vida. Eu disse 'pois, realmente é bizarro', ao que o José respondeu 'tudo na Layla é bizarro'.
Vim a saber mais tarde o que tinha acontecido: a Layla não estava de facto inscrita no nosso estágio de Pediatria por culpa da Madame Joannet, que é a senhora da faculdade responsável pelos Erasmus. Teve então de ir ao outro hospital pedir para a aceitarem, sem sucesso. Acabou recambiada para um estágio de Urgências Pediátricas, que não sabe se pode fazer porque na Alemanha são capazes de não aceitar a troca.
Pouca sorte.
6 de Janeiro, Dia 4
Passei a noite de 5 para 6 a vomitar. Vomitei de hora a hora, desde a 1 até às 5 da manhã, e depois não me consegui levantar para ir ao estágio. Na manhã do dia 6 começou a diarreia e as náuseas continuam.
Agora aqui estou, a acabar de escrever, pela primeira vez nalgumas semanas, um post com mais palavras do que fotografias.
Pedro
Ao final da manhã, enquanto víamos as 20 estações de autocarro passarem lentamente e discutíamos as motivações da ETA, o José fez-me notar que de facto a Layla não mais tinha dado sinais de vida. Eu disse 'pois, realmente é bizarro', ao que o José respondeu 'tudo na Layla é bizarro'.
Vim a saber mais tarde o que tinha acontecido: a Layla não estava de facto inscrita no nosso estágio de Pediatria por culpa da Madame Joannet, que é a senhora da faculdade responsável pelos Erasmus. Teve então de ir ao outro hospital pedir para a aceitarem, sem sucesso. Acabou recambiada para um estágio de Urgências Pediátricas, que não sabe se pode fazer porque na Alemanha são capazes de não aceitar a troca.
Pouca sorte.
6 de Janeiro, Dia 4
Passei a noite de 5 para 6 a vomitar. Vomitei de hora a hora, desde a 1 até às 5 da manhã, e depois não me consegui levantar para ir ao estágio. Na manhã do dia 6 começou a diarreia e as náuseas continuam.
Agora aqui estou, a acabar de escrever, pela primeira vez nalgumas semanas, um post com mais palavras do que fotografias.
Pedro
Oh meu querido... ainda bem q arranjaste um "shit-break" para vires aqui contar as peripécias "merdosas" .. ahaha :P Apanha tdo agora para dps não m passares nd!
:P
bjooooooo
cris*
Já estás melhor?
Já marcamos o voo =) chegamos 23 à noite. yey!!
bj