Três semanas depois, já estou habituado ao novo estágio.
A (des)organização
Como de costume, não sei bem por onde começar, porque são tantas as coisas que uma pessoa até se perde. Depois de uns quantos dias em buscas incessantes por dossiês médicos e de enfermagem por entre os três corredores do meu serviço, habituei-me a estabelecer um esquema mental que passa essencialmente por (a) procurar o dossiê no carrinho do corredor correspondente, e, se o não encontrar, (b) procurar no buraco onde se metem os dossiês dos doentes que vão sair do serviço para fazerem exames naquele dia, o que, revelando-se infrutífero, exige quase sempre (c) que se pergunte à Dominique onde raio pára o dossiê do doente ou (d) à secretária do serviço, que na certa não terá boa a resposta a dar-me visto que, muito provavelmente, (e) o dossiê não existe.
Nesta roda viva de encontra-desencontra-afinal-o-enfermeiro-precisa-da-capa-com-o-registo-das-constantes-vitais-e-eu-fico-na-merda, e por entre momentos de pura insanidade, descobri que o meu serviço está repleto de gente super interessante (pun intended).
Comecemos então pelo topo da cadeia alimentar.
O Chefe
Monsieur Slama parece o Poirrot. Magrebino na certa, com o bigodinho típico e bastante simpático, por vezes também se passa e ralha com os internos, sobretudo quando as prescrições estão mal feitas. No primeiro dia, perguntou-me de onde vinha, e eu respondi-lhe ‘du Portugal’, como era preciso. E na semana passada, quando tivemos o nosso primeiro staff de externos com ele, foi a minha doente (Madame Guerreiro, portuguesa, claro está, para mim Dona Joaquina, que estava deliciada com o facto de ter um doutor português no serviço mas ainda assim tinha na certa um síndrome demencial porque não raras vezes começava a falar comigo no seu francês macarrónico, depois mudava para português que eu sou tão parva afinal o doutor é de Portugal, para finalmente recomeçar com a história do j’ai mal aux pernas) que esteve em discussão, porque a senhora tinha uma HTAP pós-capilar que ninguém sabia explicar convenientemente. Tive medo, porque o homem tem fama de brigar com os externos, mas felizmente tinha lido umas coisas sobre o assunto antes e até não me saí mal.
A PH
A Practicien Hospitalière do meu serviço é uma versão ainda mais fixe da Christina Yang. É asiática, ma non troppo – c'est-à-dire, na certa resultou de cruzamento asian + francês. Fala connosco de forma implacável, mas explica-nos as coisas, ainda que de forma demasiado rápida para que alguém consiga seguer tentar perceber. O melhor de tudo é que se ri, goza connosco, briga com os doentes e é o mais próximo de uma cardio god que aquele serviço tem.
Os Chefes de Clínica
Há dois chefes de clínica no meu serviço – o Vincent, cuja cara eu raramente vejo porque passa o tempo todo a fazer coronarografias e a meter pacemakers, e a Julie, com quem eu nunca falei porque tenho medo dela.
Os Internos
A minha parte do serviço tem exactamente três internos, cada um responsável por doze doentes : o Julien, que eu ao início pensava que era muçulmano mas agora começo a achar que é judeu ; o Denis, que é Romeno mas parece ucraniano, tem ascendência turca e esse sim, é muçulmano e ficou preso em 2006 porque vai de crocs para o serviço todos os dias ; e a Myriam, que é Marroquina, especialista em Cardiologia, mas em França não lhe reconhecem mais que o nível de interna.
O Julien foi o 400º classificado no exame de internato no seu ano, o que, tendo em conta que são 6000 médicos a passar o concurso, faz dele Deus na terra. Noutro dia começou a interrogar-me sobre hiponatrémia, o que deu, evidentemente, merda da grossa, e depois perguntou-me se sabia fazer exame neurológico, ao que eu respondi ‘não, mas imagino que me vás ensinar’, o que nunca se chegou a concretizar. Ele sofre de perda de memória a curto prazo, o que é de estranhar para um supra-sumo do conhecimento médico. Esquece-se das patologias dos doentes e por três vezes me pediu para fazer um MMS à dona Joaquina, que era analfabeta ; à terceira vez, disse-me que se a mulher não sabia ler nem escrever então eu poderia fazer-lhe o MMS em Português, o que me fez ficar a olhar para ele, boquiaberto e ainda mais espantado do que na vez em que ele insistira, porque insistira, que o furosemido não era um diurético.
Aparentemente, nem Deus é perfeito nesta terra.
O Denis é super fixe, mesmo com os crocs. Quando me colocou exactamente a mesma pergunta em relação aos meus conhecimentos de exame neurológico que o Julien me tinha feito dias antes, eu respondi de modo semelhante, o que o fez esboçar um sorriso trocista e dizer ‘eu, ensinar-te ? Quem me dera a mim lembrar-me de como se faz um exame neurológico’.
Ai caraças, isto não anda nada bem.
Porém, foi com o Denis que tive a minha primeira experiência de salle de garde. Na sexta-feira passada, tanto o Nessim como a Rosa Maria, os meus dois co-externos que supostamente se ocupam comigo dos doze doentes do fundo do corredor, decidiram faltar. Tive portanto de fazer tudo o que era preciso com o Denis para esses doze pacientes, rogando pragas a torto e a direito e jurando que os dois filhos de puta haviam de mas pagar. Ao final da manhã, quando já não via mais reprogramadores de pacemaker à minha frente, o Denis perguntou-me se queria ir almoçar com ele à salle de garde, que é uma espécie de restaurante feito para os internos. Eu disse que sim sem pensar duas vezes, porque afinal de contas comer de graça é sempre bom.
Uma salle de garde francesa é um sítio, no mínimo, peculiar. Quando se chega para almoçar, tem de se percorrer todas as mesas e tocar no ombro a todas as pessoas que estejam sentadas, caso contrário o interno que nos acompanha (e que portanto é responsável por nós, externos), tem de fazer correr uma espécie de roda da sorte pregada na parede onde há inúmeras opções de castigo, desde mostrar as mamas, o rabo ou afins, comer uma banana como n’A Dama e o Vagabundo com um completo desconhecido, simular orgamos múltiplos, entre outros. Qualquer infracção que o externo cometa (desde ser apanhado com o telemóvel na mão até falar de medicina, religião ou política) é sempre paga pelo interno responsável por ele com actividades que as mais das vezes envolvem sexo. As paredes são pintadas com o conteúdo mais gráfico que possam imaginar, desde sereias envolvidas por tritões com, digamos, mais de três dentes. Fora isso, a comida é muito boa e servida na mesa, com travessas de saladas, selecção de vários tipos de queijos, fruta e doces, chocolate milka e côte d’or e cafezinho no final da refeição. Tudo gratuito e pago pelo interno.
Bem-vindo à França, Pedro. E já só te faltam quatro meses.
Os externos
Só hoje descobri que um dos meus colegas externos é pai e marido – medo times infinito. E nem parece muito mais velho do que eu, talvez um ou dois anos. Acidente de percurso, much ? Quem sabe, mas no dia em que soube que a Helga joga farmville no facebook, decidi que jamais alguma situação de família monoparental/estudantes pais e cônjuges e trabalhadores me espantaria.
A Orlane, que já tinha estado comigo da Pediatria, acha que a Coralie (nossa co-externa) e o Julien andam a ter um caso. Num dos momentos em que eu corria pelo serviço à procura de um dossiê e, em desespero de causa, decidi perguntar à Orlane onde estava o Julien porque ele talvez soubesse onde estava a coisa, ela olha para mim como se tivesse acabado de vazar o cesto da roupa suja na ribeira e diz-me ‘não sei, mas agora que perguntas, tenho de te dizer que já há algum tempo que ele e a Coralie desapareceram’. Eu fiz um sorriso como se não tivesse percebido e perguntei-lhe ‘o que queres dizer com isso ?’, ao que ela responde ‘Oh, je dis ça, je dis rien’. E virou-me costas.
Tal como em Pediatria um dia o Mohamed teve de fazer um diagnóstico de morte+ressurreição, o que se houvera revelado impossível, assim também eu creio que a probabilidade de a Coralie andar com o Julien é reduzida, porque não se pode andar com Deus.
Deus é que anda connosco, o que neste caso poderá tornar-se fatal.
ahahaha :) como sempre os teus posts têm montes de piada! beijo Carolina
Brilhante..... Li o teu post com o David e com o Garrido, já na sala de cinema antes dos trailers... Rimo-nos imenso e ficamos mesmo bem dispostos! Obrigada Pedro! Daqui a uns dia estamos aí para te chatear e invadir o teu espaço :o Mas antes ainda há a visita mais especial de todas! =)
Beijinhos grandes,
Zica